Postado por Alex Sandro VOLTAR
INTRODUÇÃO
Lucas, o médico amado, não foi um
apóstolo nem tampouco foi uma testemunha ocular da vida de Jesus, todavia
deixou uma das mais belas obras literárias já escritas sobre os feitos do
Salvador e os primeiros anos da comunidade cristã.
A narrativa de Lucas descreve, com
riqueza de detalhes, o ministério terreno de Jesus, como ele nasceu, cresceu,
libertou os oprimidos, formou os seus discípulos, morreu pendurado em uma cruz
e ressuscitou dos mortos.
O terceiro Evangelho possui uma forte
ênfase carismática. Mais do que qualquer outro evangelista ou escrito do Novo
Testamento, Lucas dá amplo destaque à pessoa do Espírito Santo durante o
ministério público de Jesus até sua efusão sobre os cristãos primitivos. Nesse
aspecto, a obra de Lucas deve ser entendida como um compêndio de dois volumes,
onde o segundo volume, Atos dos Apóstolos, é entendido a partir do primeiro, o
terceiro Evangelho, e vice-versa.
Um erro bastante comum cometido por
vários teólogos, principalmente aqueles que não creem na atualidade dos dons
espirituais, é tentar “paulinizar” os escritos de Lucas. Por não entenderem o
pensamento lucano, não o vendo como teólogo como de fato ele era, mas apenas
como um historiador, tentam interpretá-lo à luz dos escritos de Paulo.
Evidentemente que toda Escritura é inspirada por Deus e que o princípio da
analogia é uma das ferramentas básicas da boa exegese, todavia isso não nos dá
o direito de transformar Lucas em mero coadjuvante da teologia paulina. Em
outras palavras, Paulo deve ser usado para se compreender corretamente Lucas,
mas também Lucas deve ser consultado para se quer entender, de fato, o que
Paulo escreveu.
Esse entendimento se torna mais ainda
relevante quando aplicamos essa metodologia em relação aos carismas do Espírito
narrado no terceiro Evangelho, em Atos dos Apóstolos e nas epístolas paulinas.
Se Paulo foi um teólogo, possuindo independência para falar dos dons do
Espírito, Lucas da mesma forma também o foi e seu pensamento é tão relevante
quanto o de Paulo. Nesse aspecto Lucas não deve ser entendido apenas como um
narrador de fatos históricos, mas como um teólogo que escreveu a história.
Este livro mostra facetas dessa
abordagem metodológica na interpretação de Lucas, mas não segue o modelo
adotado nos comentários de natureza puramente expositiva como são, por exemplo,
as obras de Leon Morris, William Hendriksen, Fritz Rienecker, J.C. Ryle e
outros. Isso tem uma razão de ser — o presente texto não é um comentário
versículo por versículo do evangelho de Lucas, nem mesmo capítulo por capítulo.
Antes, é uma abordagem temática dos principais fatos ocorridos durante o
ministério público de Jesus, como por exemplo, seu nascimento, crescimento,
morte e ressurreição. Tendo sido escrito como texto de apoio às Lições Bíblicas
de Jovens e Adultos da Escola Dominical esse tipo de abordagem permite trazer
um comentário mais exaustivo sobre cada tema, mas, sem dúvida, limita um estudo
mais expositivo do texto bíblico. Isso explica, por exemplo, o porquê de
determinados textos, mesmo sendo importantes dentro do contexto da teologia
lucana, não terem sido abordados aqui.
Procurando fugir do tecnicismo das
obras de natureza puramente exegética, até mesmo por seguir a estrutura das
Lições Bíblicas a quem serve de apoio, o presente livro primou por ser mais de
natureza devo- cional-teológica. Isso não significa que a exegese e os
princípios bíblicos de interpretação foram relegados ao segundo plano. Não!
Todavia procurou o presente texto dialogar com o leitor por saber que muitos
deles, alunos da ED, não tiveram acesso ao intrincado mundo das enfadonhas
regras gramaticais.
Que o Senhor abençoe a cada leitor
deste livro.
O PROPÓSITO DE LUCAS
METODOLOGIA
Ao estudarmos uma obra literária,
precisamos, dentre outras coisas, levar em conta a sua autoria e data, o tipo
de gênero literário, o seu destinatário e o propósito para o qual ela foi
escrita. Essa metodologia é importante não apenas para o estudo de textos
bíblicos, mas também para qualquer obra da literária universal. A sua
observância garantirá que o intérprete não chegue a conclusões equivocadas e
diferentes da- quelas que tencionou o autor.
O estudante da Bíblia deve, portanto,
ter isso em mente quando estuda o terceiro Evangelho. Roger Stronstad, teólogo
de tradição pentecostal canadense, demonstrou, por exemplo, que uma metodologia
errada na análise do Evangelho de Lucas tem levado vários estudiosos a chegarem
a conclusões teológicas igualmente erradas.1 Esses equívocos têm como
subprodutos uma fé e prática cristã diferente daquela desenhada nas obras de
Lucas.
Ao analisar, por exemplo, os contrastes
existentes no desenvolvimento histórico da doutrina do Espírito Santo nas
diferentes tradições cristãs, Stronstad observa que “essa divisão não é
simplesmente teológica. No fundo, o assunto tem diferenças hermenêuticas ou
metodológicas fundamentais. Essas diferenças metodológicas surgem dos diversos
gêneros literários e são da mesma extensão que estes. Por exemplo, há que
deduzir a teologia do Espírito Santo de Lucas de uma “história” de dois volumes
sobre a fundação e o crescimento do cristianismo, dos quais se classifica o
volume um como um Evangelho e o volume dois como Atos. Por contraste, temos que
derivar a teologia do Espírito Santo de Paulo de suas cartas, as quais dirigiu
às igrejas geograficamente separadas em diferentes ocasiões de suas jornadas
missionárias. Estas cartas são circunstanciais, quer dizer, tratam de alguma
circunstância particular: por exemplo notícias de controvérsias (Gálatas), respostas
às perguntas específicas (1 Coríntios) ou planos para uma visita vindoura
(Romanos). Assim que, à medida que Lucas narra o papel do Espírito Santo na
história da igreja primitiva, Paulo ensina a seus leitores acerca da pessoa e
ministério do Espírito”.
AUTORIA
Como veremos mais adiante, a tradição
que atribui autoria lucana para o terceiro Evangelho é muito antiga. No texto
bíblico, as referências ao “médico amado” são Colossenses 4.14; 2 Timóteo 4.11
e Filemon 24. Todavia assim como outros escritos do Novo Testamento, o terceiro
Evangelho também não traz grafado o nome de seu autor.
EVIDÊNCIAS INTERNAS DA AUTORIA LUCANA
Diferentemente de outros livros
neotestamentários que são anônimos, o terceiro Evangelho deixou pistas que
permitiram à igreja atribuir a Lucas, o médico amado, a sua autoria. Alguns
desses indícios internos listados pelos biblistas são:
1. Tanto o livro de Lucas como o livro
de Atos são endereçados a uma pessoa identificada como Teófilo. “Tendo, pois,
muitos empreendido pôr em ordem a narração dos fatos que entre nós se
cumpriram, segundo nos transmitiram os mesmos que os presenciaram desde o
princípio e foram ministros da palavra, pareceu-me também a mim conveniente
descrevê-los a ti, ó excelentíssimo Teófilo, por sua ordem, havendo-me já
informado minuciosamente de tudo desde o princípio” (Lc 1.3), “Fiz o primeiro
tratado, ó Teófilo, acerca de tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a
ensinar, até ao dia em que foi recebido em cima, depois de ter dado
mandamentos, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera; aos quais
também, depois de ter padecido, se apresentou vivo, com muitas e infalíveis
provas, sendo visto por eles por espaço de quarenta dias e falando do que
respeita ao Reino de Deus” (At 1.1-3).
2. Como vimos, o livro de Atos se
refere a um outro livro que fora escrito anteriormente (At 1.1), que sem dúvida
alguma trata-se do terceiro Evangelho. Quem escreveu Atos dos Apóstolos,
portanto, escreveu também o terceiro evangelho.
3. O estilo literário e as
características estruturais de Lucas e Atos apontam na direção de um só autor;
4. Muitos temas comuns ao terceiro
Evangelho e Atos não são encontrados em nenhum outro lugar do Novo Testamento.
Por exemplo, a ênfase na ação carismática do Espírito Santo sobre Jesus e seus
seguidores (Lc 24.49; At 1.4-8). Devemos observar ainda, como destaca Walter
Liefeld, dentro dessa perspectiva, que o autor de Lucas-Atos não foi uma
testemunha ocular dos feitos de Jesus, mas um cristão da segunda geração que se
propôs a documentar a tradição existente sobre Jesus e o andar dos primeiros
cristãos. Na passagem de Atos 16.10-17, a referência à primeira pessoa do
plural (nós) além de revelar que Lucas era um dos companheiros de Paulo na
segunda viagem missionária mostra também que era ele quem documentava esses
registros:
“E, logo depois desta visão, procuramos
partir para a Macedônia, concluindo que o Senhor nos chamava para lhes
anunciarmos o evangelho. E, navegando de Trôade, fomos correndo em caminho
direito para a Samotrácia e, no dia seguinte, para Neápolis; e dali, para
Filipos, que é a primeira cidade desta parte da Macedônia e é uma colônia; e
estivemos alguns dias nesta cidade. No dia de sábado, saímos fora das portas,
para a beira do rio, onde julgávamos haver um lugar para oração; e, assentando-nos,
falamos às mulheres que ali se ajuntaram. E uma certa mulher, chamada Lídia,
vendedora de púrpura, da cidade de Tiatira, e que servia a Deus, nos ouvia, e o
Senhor lhe abriu o coração para que estivesse atenta ao que Paulo dizia. Depois
que foi batizada, ela e a sua casa, nos rogou, dizendo: Se haveis julgado que
eu seja fiel ao Senhor, entrai em minha casa e ficai ali. E nos constrangeu a
isso. E aconteceu que, indo nós à oração, nos saiu ao encontro uma jovem que
tinha espírito de adivinhação, a qual, adivinhando, dava grande lucro aos seus
senhores. Esta, seguindo a Paulo e a nós, clamava, dizendo: Estes homens, que
nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo” (At
16.10-17).
Essas evidências internas, sem sombra
de dúvidas, apontam a autoria lucana do terceiro Evangelho. A propósito, em
1882 o escritor W.K. Hobart em seu livro: A Linguagem Médica de Lucas
demonstrou a existência de vários termos médicos usados no terceiro Evangelho,
o que confirmaria a autoria lucana. Posteriormente a obra O Estilo Literário de
Lucas, escrita por H. J. Cadbury tentou mostrar que não somente Lucas usou
termos médicos em sua obra, mas que outros escritores, mesmo não sendo médicos,
fizeram o mesmo. Mas como bem observou William Hendriksen, quando se faz um
paralelo entre Lucas e os demais Evangelhos Sinóticos observa-se a
peculiaridade do vocabulário médico empregado por Lucas. Hendriksen comparou,
por exemplo, Lucas 4.38 com Mateus 8.14 e Marcos 1.30 (a natureza ou grau da
febre da sogra de Pedro); Lucas 5.12 com Mateus 8.2 e Marcos 1.40 (a lepra); e
Lucas 8.43 com Marcos 5.26 (a mulher e os médicos). Ainda de acordo com
Hendriksen, pode-se acrescentar facilmente outros pequenos toques. Por exemplo,
somente Lucas declara que era a mão direita que estava seca (6.6, cf. Mt 12.10;
Mc 3.1); e entre os escritores sinóticos, somente Lucas menciona que foi a
orelha direita do servo do sumo sacerdote a ser cortada (22.50; cf. Mt 26.51 e
Mc 14.47). Compare também Lucas 5.18 com Mateus 9.2, 6 e Marcos 2.3, 5, 9; e
çf. Lucas 18.25 com Mateus 19.24 e Marcos 10.25. Além do mais, conclui
Hendrinksen, embora seja verdade que os quatro Evangelhos apresentam Cristo
como o Médico compassivo da alma e do corpo, e ao fazê-lo revelam que seus
escritores também eram homens de terna compaixão, em nenhuma parte é este traço
mais abundantemente notório que no Terceiro Evangelho.
EVIDÊNCIAS EXTERNAS DA AUTORIA LUCANA
Além dessas evidências internas, há
também diversas evidências externas, que fazem parte da tradição cristã,
atestando a autoria lucana para o terceiro Evangelho. Uma delas, o cânon
muratoriano, escrita em cerca de 180 d.C., confirma a autoria de Lucas: “o
terceiro livro do Evangelho, segundo Lucas, que era médico, que após a ascensão
de Cristo, quando Paulo o tinha levado com ele como companheiro de sua jornada,
compôs em seu próprio nome, com base em relatório”. Em cerca de 135 d.C., antes
portanto do Cânon muratoriano, Marcião, o herege, também atesta a autoria de
Lucas para o terceiro Evangelho. Testemunho confirmado posteriormente por
Irineu (Contra as Heresias, 3.14-1) e outros escritores posteriores.
DATA DE COMPOSIÇÃO DA OBRA
A data da composição do terceiro
evangelho é melhor definida pelos biblistas quando se leva em conta alguns
fatores. Por exemplo, se Lucas valeu-se do Evangelho de Marcos como uma de suas
fontes, nesse caso é preciso situá-lo em data posterior ao escrito de Marcos
que foi redigido alguns anos antes do ano 70 d.C. Segundo, se Lucas é o
primeiro volume de uma obra em dois volumes (Lucas-Atos), como se acredita que
é, fica bastante evidente que o terceiro Evangelho foi compilado antes dos Atos
dos Apóstolos. Nesse caso será preciso primeiramente datar o livro de Atos. Os
eruditos acreditam que, levando-se em conta uma análise detalhada do livro de
Atos dos Apóstolos, a data para sua redação está entre 61 a 65 d.C. Em Terceiro
lugar, a data para a redação de Lucas dependerá também de como se interpreta o
sermão feito por Cristo sobre a destruição de Jerusalém (Lc 21.8-36). Nesse caso,
argumentam os críticos, Lucas escreveu depois da destruição de Jerusalém no ano
70 visto ter feito referência aos fatos ocorridos nessa data. Esse argumento é
fraco, visto que Cristo proferiu uma profecia sobre os eventos do fim e que
tiveram início na destruição de Jerusalém. E o que os teólogos denominam de
vaticinium ex eventu, isto é, uma profecia que é feita antes que o evento
ocorra. Em quarto lugar, muitos críticos argumentam em favor de uma data mais
tardia para Lucas, porque segundo eles, algumas situações mostradas nas obras
de Lucas demonstrariam situações que ainda não existiam nos anos 60 e 70 d.C.
Mas esse é um argumento que não se sustenta pelas mesmas razões já expostas
anteriormente.6 Em resumo, Lucas redigiu sua obra entre os anos 60 e 70, sendo
que alguns estudiosos opinam para a primeira parte dessa década enquanto outros
pela segunda. Seja como for, isso em nada altera aquilo que Lucas escreveu.
GÊNERO LITERÁRIO
Compreender a que tipo de gênero
literário pertence o terceiro Evangelho é crucial para uma correta compreensão
do seu texto. Isso se torna mais relevante ainda quando se estuda o papel que o
Espírito Santo ocupa na teologia lucana. Já há algum tempo, a perspectiva
teológica que via as obras de Lucas apenas como biografia e história vem sendo
abandonadas pelos biblistas. Em 1970 o conceituado teólogo I. Howard Marshall
chamou a atenção para o fato de que Lucas não poderia ser visto mais como um
simples historiador, mas como um teólogo que escreveu a história. Em outras
palavras, Lucas não apenas documentou os fatos, mas escreveu suas obras tendo
em mente um propósito teológico definido. Nesse aspecto, observa o escritor
Luís Fernando Garcia-Viana, “Lucas é o teólogo da história da salvação: a
história de Israel ou tempo da preparação; Jesus como centro do tempo (Lc
16.16); e o tempo da missão ou da igreja, que se inicia com a Ascensão e o
Pentecostes”.
Quando se reduz as obras de Lucas
apenas à sua dimensão histórica, forçosamente se é tentado a vê-las apenas como
material de natureza narrativa ou descritiva e sem nenhum valor didático. Esse
é um erro que precisamos evitar a todo custo. Por muitos anos esse era o
entendimento que dominava os círculos teológicos graças às obras dos teólogos
John Stott e Gordon D. Fee. Partindo de uma metodologia que atribui apenas
valor narrativo e não didático à obra de Lucas, tanto Sott como Fee acabaram
por mutilar o caráter claramente carismático do texto lucano. A esse respeito,
Stott escreveu:
“Se deve buscar a revelação do
propósito de Deus nas Escrituras nas partes didáticas, e jamais em sua porção
histórica. Mais precisamente devemos buscá-la nos ensinos de Jesus e nos
sermões e escritos dos apóstolos e não nas porções puramente narrativas de
Atos”.
Esse é um exemplo clássico de falácia
exegética, pois anula uma máxima bíblica na qual se afirma que toda Escritura é
inspirada por Deus e é útil para o nosso ensino (2 Tm 3.16; Rm 15.4). Por outro
lado, não leva em conta o caráter didático das narrativas veterotestamentárias
usadas por Paulo quando instrui os primeiros cristãos (Rm 4.1-25;
1 Co 10.1-12; G1 3.6-14). A propósito,
após ver sua argumentação ser contraditada por Roger Stronstad, o anglicano
John Stott voltou atrás e fez emendas em sua tese:
“Não estou negando que narrativas
históricas têm uma finalidade didática, pois é claro que Lucas era tanto um
historiador e um teólogo; Estou afirmando que a finalidade didática de uma
narrativa nem sempre é evidente em si mesma e por isso muitas vezes precisa de
ajuda interpretativa de outro lugar nas Escrituras”.
Lucas, portanto, foi um teólogo que
escreveu a história e ao assim proceder o fez com um fim didático.
Primeiramente ele mostra no seu Evangelho a história da Salvação se revelando
de uma forma especial e chegando ao seu clímax com Jesus, o Messias prometido.
O Espírito do Senhor, que agiu sobre os antigos profetas e que seria um sinal
distintivo do Messias (Is 61.1; Lc 4.18), estava sobre Jesus capacitando-o a
realizar as obras de Deus. No segundo volume da sua obra, Atos dos Apóstolos,
ele demonstra que essa história da Salvação não sofreu solução de continuidade,
pois o mesmo Jesus, na pessoa do Espírito Santo, continuou presente em seus
seguidores. O Messias cumpriu as profecias e derramou o Espírito Santo sobre
toda a carne (Jl 2.28; At 2.33; 5.32). Não há dúvidas, portanto, que a teologia
lucana mostra de forma inequívoca que as mesmas experiências dos cristãos
primitivos serviriam de parâmetro para todos os crentes na história da igreja.
PROPÓSITO
A FÉ CRISTÃ NO SEU CONTEXTO HISTÓRICO
E inegável que Lucas, como um teólogo,
demonstrou um grande interesse pelos fatos históricos quando redigiu sua obra.
O prólogo, escrito a Teófilo, que se acredita ser um gentio de alta posição
social, atesta isso. “Tendo, pois, muitos empreendido pôr em ordem a narração
dos fatos que entre nós se cumpriram, segundo nos transmitiram os mesmos que os
presenciaram desde o princípio e foram ministros da palavra, pareceu-me também
a mim conveniente descrevê-los a ti, ó excelentíssimo Teófilo, por sua ordem,
havendo-me já informado minuciosamente de tudo desde o princípio, para que
conheças a certeza das coisas de que já estás informado” (Lc 1.1-4).
O que pretendia, portanto, o autor do
terceiro Evangelho ao documentar sua obra? Lucas procura narrar a história; mas
não a história como se entende hoje em seu sentido secular ou positivo, que se
prende apenas à narrativa das ações humanas.14 Ele narra a história da
Salvação. A história de Lucas é a história da ação de Deus entre os homens e
como ele demonstra a sua soberania entre eles! Dentro desse contexto o seu
interesse era mostrar os fatos sobre os quais o evangelho estava fundamentado;
estabelecer o vínculo entre o cristianismo e o judaísmo, revelando dessa forma
que a fé cristã possuía raízes judaicas; deixar claro que o cristianismo não
veio para competir com o império romano, mostrando assim que ele não era uma
ameaça política à autoridade do império.
UMA TEOLOGIA CARISMÁTICA
Como um escritor inspirado e um teólogo
cristão, Lucas mostra que o tempo do cumprimento das promessas de Deus,
preditas nos antigos profetas, havia chegado. Fica claro para ele que o advento
do cristianismo foi precedido pela renovação do Espírito profético. O último
profeta, Malaquias, havia silenciado cerca de quatrocentos anos antes. Esse
hiato entre os dois testamentos é conhecido como período interbíblico. Agora
esse silêncio é rompido, primeiramente pelo anúncio feito a Zacarias, pai de
João Batista (Lc 1.13) e posteriormente a Maria, a mãe de Jesus (Lc 1.28). É,
contudo, no ministério de João Batista, que Lucas mostra a restauração da
antiga profecia bíblica: “E, no ano quinze do império de Tibério César, sendo
Pôncio Pilatos governador da Judeia, e Herodes, tetrarca da Galileia, e seu
irmão Filipe, tetrarca da Itureia e da província de Traconites, e Lisânias,
tetrarca de Abilene, sendo Anás e Caifás sumos sacerdotes, veio no deserto a
palavra de Deus a João, filho de Zacarias” (Lc 3.1-2).
Essa restauração da antiga profecia
bíblica, como veremos em capítulos posteriores, é importante no contexto da
teologia carismática de Lucas. Já foi dito que Lucas escreveu uma obra em dois
volumes e esse é um fato importante porque essa homogeneidade nos ajuda
compreender a ação do Espírito Santo na teologia Lucas-Atos. No Evangelho,
Lucas mostra o Espírito atuando sobre o Messias e capacitando-o para realizar
as obras de Deus como havia sido prometido nas profecias (Lc 4.18; Is 61.1).
Por outro lado, no livro de Atos está o cumprimento da promessa do Messias de
derramar esse mesmo Espírito sobre os seus seguidores (Lc 11.13; 24.49; At 1.8).
Em outras palavras, o mesmo revestimento de poder que estava sobre Jesus Cristo
e que o capacitou a curar os enfermos, ressuscitar os mortos e expulsar os
demônios seria também dado a seus seguidores quando ele fosse glorificado. “De
sorte que, exaltado pela destra de Deus e tendo recebido do Pai a promessa do
Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis” (At 2.33); “nós
somos testemunhas acerca destas palavras, nós e também o Espírito Santo, que
Deus deu àqueles que lhe obedecem” (At 5.32).
A HISTÓRIA DA SALVAÇÃO
A história da Salvação no terceiro
Evangelho é revelada em seu aspecto particular e universal. Sem dúvida a ênfase
maior está na universalidade da Salvação. Jesus veio para os judeus, mas não
somente para estes, ele veio também para os gentios. A Salvação é para todos!
Esse princípio teológico de Lucas fica em evidência quando se observa o lugar
que os excluídos ocupam nos seus registros. No anúncio do nascimento de Jesus
feito pelos anjos aos camponeses foi dito: “Vos trago boa-nova de grande
alegria, que o será para todo o povo” (Lc 2.10).
Todo o povo, e não apenas os judeus,
era objeto da graça de Deus. E inegável a atenção que se dá aos pobres,
excluídos e marginalizados no Evangelho de Lucas. O Espírito Santo estava sobre
Jesus para “evangelizar os pobres” (Lc 4.18). É interessante observarmos que a
palavra grega ptochoi, traduzida como pobres, significa alguém que possui
alguma carência. E exatamente esses carentes que Jesus irá priorizar em seu
ministério. Ele dará grande atenção aos publicanos, pecadores, mulheres e aos
samaritanos que eram discriminados naquela cultura (Lc 5.32; 7.34-39;9.51-56;
10.3; 15.1; 17.16; 18.13; 19.10).
Essa Salvação predita pelos profetas,
anunciada pelos anjos e declamada em forma poética pelo sacerdote Zacarias e
Maria, mãe de Jesus, é também de natureza escatológica. A teologia lucana
mostra João anunciado a chegada do Reino e Jesus estabelecendo-o durante o seu
ministério. Todavia esse Reino inaugurado pela manifestação messiânica (Lc
4.43; 8.1; 9.2; 17.21) ainda não está revelado em toda a sua extensão. Já
podemos, sim, viver a sua realidade no presente, mas a sua plenitude somente na
sua parousial (At 1.6-11).
Essa é a nossa esperança!
José Gonçalves. Lucas,
O Evangelho de Jesus, o Homem Perfeito.
Editora CPAD. pag. 11-21
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