Por Alex Sandro
História
Analisando atentamente o terceiro
evangelho da Bíblica e os Atos dos Apóstolos percebemos que há um plano global
subjacente à obra lucana. Usando a linguagem de Conzelmann, que divide a
história da libertação-salvação em três períodos, podemos dizer que o Primeiro
Testamento narra o caminho de Israel, que é o tempo das promessas. O evangelho
de Lucas narra o caminho de Jesus, que é o tempo da realização. Podemos deduzir
isso pela ênfase que se dá ao "Hoje": "Hoje se cumpre...".
E os Atos dos Apóstolos narra o caminho das Igrejas, que é o tempo do Espírito
Santo.
Lucas elabora uma teologia da
história que tem suas raízes no passado, chega ao auge em Jesus, continua nas
Igrejas pela ação do Espírito Santo e consuma-se na parusia. A manifestação de
Jesus não é algo que acontecerá no fim dos tempos, como se ele permanecesse
ausente; é antes a manifestação gloriosa de um Jesus que sempre esteve presente
nas comunidades, como aparece no evangelho de Mateus (Mt 28,20). Com a
ascensão, "Jesus não foi embora", mas foi exaltado, glorificado,
legitimado. Jesus "vai, mas não vai"; ausente no aspecto físico,
continua presente por meio do Espírito Santo. O corpo das pessoas que aderem ao
seu projeto passa a ser o "corpo de Cristo", movido pelo Espírito de
Jesus. Para Lucas, Deus agiu na história da primeira comunidade cristã da mesma
forma como agiu em Jesus. Este era enviado de Deus e os cristãos também o são.
Por conseqüência, concluímos que todos somos convidados a "encarnar a
realidade" de que também somos enviados de Deus para a libertação de todos
e de tudo. Ignacio Ellacuría dizia que dom Oscar Romero foi (e continua sendo,
mesmo depois da morte, como ressuscitado) um enviado de Deus para libertar o
seu povo. Oscar Romero dizia aos cristãos perseguidos pela ditadura militar em
El Salvador: "Vocês são Jesus Cristo, aqui e agora. Vocês são enviados de
Deus para salvar e libertar o nosso povo".
A parusia começou na encarnação,
vida e ressurreição de Jesus e será completada quando ele terminar de voltar e
não quando começar a voltar.
Jerusalém
em Lucas
O evangelho de Lucas é o único dos quatro evangelhos da Bíblia que começa e
termina em Jerusalém, precisamente no templo. Imediatamente depois do prólogo
geral à obra lucana (Lc 1,1-4), a primeira cena se desenvolve "no
santuário do Senhor" (Lc 1,5-23). Depois da ressurreição, os onze voltam
para o templo em Jerusalém (Lc 24,53). Os pais de Jesus o levam duas vezes ao
templo (Lc 2,22.42). O episódio de Jesus aos doze anos conversando com os
doutores no templo é prefiguração do ensinamento futuro de Jesus no templo (Lc
19,47).
Lucas apresenta as três tentações
em uma ordem diferente do evangelho de Mateus. Este inicia apresentando a
tentação da transformação de pedras em pão (primeira tentação), do jogar-se do
pináculo do templo e ser salvo pelos anjos (segunda tentação) e a tentação de
contemplar em uma alta montanha os reinos com todo o esplendor (terceira
tentação) (Mt 4,1-11 e Lc 4,1-13). Para Mateus é importante colocar a última
tentação no cume de uma montanha, pois o evangelho está sendo dirigido a
comunidades oriundas principalmente do meio judaico, onde "montanha"
é, por excelência, o local do encontro do ser humano com Deus e consigo mesmo.
Assim, Mateus enfatiza Jesus, em profunda intimidade com o Pai, na montanha,
superando as tentações.
No evangelho de Lucas, a primeira
tentação se dá no deserto, onde Jesus é tentado a transformar pedra em pão. A
segunda, acontece na montanha, em que contempla os reinos. A terceira, acontece
no pináculo do templo, onde Jesus é tentado a saltar dali para ser salvo pelos
anjos. Há uma progressão nas tentações. O clímax do confronto entre Satanás e
Jesus aconteceu precisamente em Jerusalém, onde acontecerá a execução do Justo
com a pena de morte, a pena capital. Assim, a cena na qual Jesus se encontra
sobre o pináculo da "casa de seu Pai" se torna muito eloqüente,
porque no evangelho de Lucas, "Jerusalém" é o ponto de chegada de
Jesus para realizar a obra (Lc 17,11; Lc 19,28-38). Para as primeiras
comunidades cristãs, "Jerusalém" é o ponto de partida para a missão
(Lc 24,52). Jerusalém tem uma importância particular, pois é a cidade do
"destino" final de Jesus e de onde se irradia a libertação-salvação
para todo o gênero humano. Jesus caminha para Jerusalém como se buscasse
alcançar uma meta (Lc 13,22). Lucas valoriza "Jerusalém" não somente
como lugar físico, mas primordialmente como lugar teológico que representa a
"cidade de Davi", o monte Sião, de onde Deus legisla. Lucas se refere
a "Jerusalém" com o termo grego Ierousalëm, designação de Jerusalém
não como lugar geográfico, mas de lugar sagrado do judaísmo.
Salvação
em Lucas
A salvação acontece com base nas entranhas da história da humanidade. Deus,
pela encarnação que culmina em Jesus de Nazaré, assume as entranhas humanas
para salvar todos e tudo. Infelizmente já faz parte do senso comum que salvação
se refere apenas à "alma". Perdeu-se a relação do corpo com a
salvação. Diante disso é bom recordar que a palavra "salvação", no
seu sentido original, quer dizer livrar o ser humano de algum mal físico, moral
ou político, ou de algum cataclismo cósmico; isso supõe resgate da integridade.
Com referência ao acontecimento Cristo, resgatar a integridade do ser humano
significa restabelecer sua relação inata com Deus, com os outros, com toda a
criação e consigo mesmo. Não podemos esquecer que o credo cristão afirma a
convicção na ressurreição da "carne", não apenas da "alma".
Salvação é um dos efeitos mais
importantes do acontecimento Cristo, pelo menos na mentalidade de Lucas, no
evangelho e em Atos dos Apóstolos. Ele é o único dos evangelistas sinóticos a
chamar Jesus de "Salvador". O melhor resumo que mostra o que é
salvação é: "O filho do Homem veio buscar o que estava perdido e
salvá-lo" (Lc 19,10).
Não podemos continuar pensando,
segundo o senso comum, que salvação se refere somente a algo pós-morte e que
não tem nada a ver com libertações na história. Na Bíblia, as categorias
salvação e libertação são "equivalentes" e complementares, mesmo que
alguns textos possam enfatizar mais a ideia de salvação, e outros, mais a ideia
de libertação. Por exemplo, etimologicamente o nome Josué significa "o Senhor
é libertação-salvação" (Nm 11,28); Josué é a versão hebraica do nome de
Jesus. Este é versão aramaica. Logo, etimologicamente, Jesus é o novo Josué,
aquele que liberta e salva, em um processo interdependente. Josué conduziu o
povo na conquista da terra prometida. Jesus conduz o povo para a construção do
Reino de Deus no mundo. Outro exemplo: o nome Oséias significa
libertação-salvação (Nm 13,8).O profeta Oséias combateu com veemência a
idolatria, libertando e salvando o povo.
Libertação-salvação faz parte do
campo semântico dos verbos libertar, salvar, sarar, curar, resgatar, perdoar,
reerguer, redimir, integrar, recuperar, incluir, apoiar e outros similares.
Isso indica a inter-relação existente entre libertar e salvar: são duas faces
da mesma medalha; inseparáveis como carne e unha. "Salvação" que não
implica libertação real, concreta e corporal das pessoas é pseudo-salvação.
Lucas não quer, em momento algum,
espiritualizar a proposta do Evangelho de Jesus Cristo, mas inseri-la nos
processos orgânicos de libertação. A salvação que Lucas defende não é aparente,
como diz o povo: "Peruca em cabeça de careca".
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